A superioridade
humana, que se julga dona do mundo, tem criado as regras das
espécies, e sua nacionalidade. Os chimpanzés são considerados
seres exóticos, já que são originários da África. Porém, os
ancestrais do homem são os mesmos dos chimpanzés, e sua origem é
africana. Os homens no Brasil, também poderiam ser considerados
exóticos, já que chegamos aqui procedentes de outras latitudes.
Chimpanzés no Brasil, aqui nascidos, são aproximadamente 40% da
população atual deles. A maioria é jovem, menos de 20 anos de
idade. Gil é uma brasileira, nunca poderá ser considerada um ser
exótico. A sua mãe, Margarethe, é africana e ainda está viva,
apesar dos sofrimentos em suas passagens por circo e zoológicos.
Ela não tem dentes, os quais foram arrancados cedo em um circo,
nunca conseguiu criar sua prole: Gil, sua filha possivelmente mais
velha, de aproximadamente 13 anos de idade, Noel de 7 anos, Emílio
de 5 anos e alguns outros desconhecidos, por nós e por ela.
Gil veio ao Santuário, a pouco mais de dois anos, de um circo
mineiro. Ela ficou naquele circo desde poucos meses do nascimento,
foi humanizada, vestia roupas de menina, dormia em uma cama com
humanos, brincava com bonecas e cachorros. Ela cresceu, ficou
forte, de gênio intenso, com critérios definidos. Não gostava de
crianças, talvez, foi humilhada sem saber que era um ser sensível,
amoroso, inteligente, e foi destratada.
GIL E JANGO
Gil se relacionou bem com Jango, que chegou semanas depois de
outro circo mineiro, este ainda mais humilhado, sem dentes e
castrado, talvez o máximo que se pode fazer com um ser, para
dominá-lo. Jango adorava Gil e esta que nunca tinha vivido com
outro chimpanzé, acolheu Jango como sua amiga, e quase sua mãe.
Uma vez tentamos aproximar Gil com Junior, recém-chegado de
Brasília. Gil achou Junior diferente, já que tinha testículos, o
que Jango não possuía. Junior começou a gostar de Gil, porém Jango
chorou, gritou até o desespero, e tivemos que retornar Gil com
ele, pois Jango, apesar de ser castrado, soube experimentar o
ciúme de um possível amor traído.
COMO ERA GIL?
Gil tinha características próprias, andava em dois pés uma boa
parte do tempo, com o corpo totalmente erguido, especialmente
quando estava nervosa, o que era habitual. O gênio dela era muito
forte, passava da violência ao carinho em minutos. Um tratador
novo, um pedreiro que passava pela estrada, um caminhão com
materiais para entrega, tudo isso a irritava. Nunca um chimpanzé
muito mais forte que ela conseguiu o que ela fez, praticamente
arrancou a grade de seu refeitório, em um momento de fúria. O Dr.
Rômulo Mello, Diretor Nacional de Fauna do IBAMA, em uma visita ao
Santuário dias atrás, apreciou a força e a violência do caráter de
Gil. Em sua frente, ela destruiu uma bandeja de plástico com
alimentos e jogou aos seus pés. Ela queria demonstrar para todos
os que não a conheciam que era perigosa e que não tentassem
tirá-la de lá.
Uma outra característica era sua claustrofobia, produto de ter
morado anos em gaiola, o que é freqüente em muitos de seus irmãos
que moram no Santuário. Gil dormia na plataforma a céu aberto, não
importando o frio que estivesse na madrugada, se cobria com um
cobertor e os lenços que levava de um lado para outro, e deixava
que as estrelas a protegessem de qualquer mau desígnio.
Quando Gil chegou notamos um furo próximo de sua axila, e ela
colocava o dedo lá com freqüência, e sangrava. Depois notamos um
furo similar em um lado do peito, então descobrimos que ela se
automutilava. Devagar fomos mudando o seu comportamento, e só às
vezes nos instantes de mais tensão, ela se machucava nos braços
levemente.
UM DIA ATÍPICO
No domingo do dia 18 de junho, foi um dia atípico no Santuário, o
Brasil jogava contra a Austrália à uma hora de tarde. Nos
adiantamos nossos serviços para poder assistir a partida. Na noite
anterior as festividades juninas geraram mais fogos que o de
costume, o que os chimpanzés nunca entendem, e sempre ficam
atemorizados e tensos. Eu estava com Luke na cerca elétrica dele,
que dava acesso ao recinto de Gil e Jango. Quando era ainda bem
cedo, em minha primeira visita aos recintos para levar algumas
frutas e iogurtes, Gil não tinha aparecido para cumprimentar-me.
Muitas vezes ela me dá um beijo no rosto acompanhado de um
sorriso. Luke estava apreensivo, ele ouve sons que meus ouvidos e
o de nenhum humano conseguem escutar. Uma hora antes Caco e Jully
também estavam diferentes. Escutaram coisas que eu não escutei.
Era meio dia e meio, estava terminando de almoçar e fui
interrompido por tratadores solicitando que eu fosse ao recinto de
Gil e Jango, ela estava na plataforma desmaiada, com sangue saindo
pela boca. Voei para lá, e Gil estava na plataforma sem vida,
Jango que minutos antes ficou com ela passando a mão por seu
corpo, tentando reanimá-la, agora caminhava de um lado a outro do
recinto, implorando por nossa ajuda. Passamos Pongo para a cerca
elétrica, e Jango com esforço passou para o recinto de Pongo,
então conseguimos entrar no recinto de Gil. Subi na plataforma, e
confirmei que ela já levava 2 ou 3 horas sem vida.
O DESESPERO DE JANGO
Gil era pesada, devido a sua ansiedade, comia muito. Sua bandeja
de frutas e verduras após o meio dia já estava vazia. Em dois anos
conosco ela dobrou de peso e tamanho. Descemos o seu corpo com a
ajuda dos tratadores. A Dra. Camila, chamada às pressas, chegou
nesse momento. Tinha muito sangue que saiu por sua boca, antes de
morrer, e manchava os lenços com que ela sempre se deitava. Alguns
urubus já começaram a sentir o cheiro e pairavam a cem metros de
altura. Luke viu tirá-la do recinto e no início não entendeu e
ficou furioso, batendo na cerca elétrica. Jango gritava e chorava
quando começamos a descê-la pela plataforma. Ele ainda pensava que
nós humanos, “todo-poderosos” deste Universo, podíamos salvar a
sua companheira amada. Leo, desde outra plataforma, gritou como
ele faz quando algo o atemoriza. Ele sabía que a morte tinha
arrancado a vida de uma irmã sua. Guga e os pequenos à distância
ficaram em pé tentando entender o que acontecia, que sem dúvida,
não era nada bom para eles.
A autópsia nos sinalizou o que temíamos, Gil vivia com um forte
estresse emocional, qualquer coisa a perturbava e desatava
torrentes de adrenalina em seu sistema sanguíneo, que transtornava
seu caráter, e a convertia em um ser temível e explosivo. Uma
gastrite estava indicando o seu estado de ânimo instável, e o
coração cheio de sangue, indicava um infarto fulminante do
miocárdio, que a abateu em poucos minutos.
GIL E SEUS IRMÃOS MORTOS
GIL, UMA BRASILEIRA, poderia ter sido um ser feliz, apesar do
cativeiro, já que estava bem acompanhada por seus irmãos, e pelos
poucos humanos que a tratavam. Porém, ela nunca entendeu por quê
foi arrancada de sua mãe, convertida em uma criança humana, por
poucos anos, usada para fotos, para fazer piruetas em um
picadeiro, com roupas absurdas, e depois, quando começou a
entender a civilização humana, foi jogada em uma gaiola por anos,
já que era perigosa demais para ser usada e explorada.
Gil será sepultada na sexta-feira, dia 23 de junho, no Cemitério
do Santuário, junto com seus poucos irmãos também fulminados ainda
jovens por uma morte não anunciada:
. FLINT, macho nascido na Holanda, possivelmente submetido
a experiências pseudomédicas quando era bebê, que morreu dias após
chegar 6 anos atrás, com seus pulmões destruídos por infecções.
. CHUCA, fêmea, veio do México, morta em São Bernardo
do Campo, por um policial despreparado quando ela fugiu da casa de
um funcionário de um circo e que o IBAMA nos entregou o seu corpo.
. SUZI, fêmea, veio da África, tinha aproximadamente
22 anos de idade, diabética Tipo I
(dependente de insulina), que morreu meses depois de chegar ao
Santuário, procedente de outro circo, que nos ocultou sua doença.
A MENSAGEM DE TUCA
No dia seguinte, como é habitual, às 7:00 h da manhã, eu estava
distribuindo frutas e iogurtes no complexo de recintos onde Gil
morava, quando Tuca apareceu no refeitório, algo que nunca
acontece tão cedo, e começou a olhar pelo corredor apontando para
o recinto de Gil. Tuca tinha presenciado a morte, a descida do
corpo e o seu traslado para nossa clínica. Ela depois subiu na
grade e pela janela de vidro olhou para a clínica à distância,
pegou minha mão, deu um beijo em meu rosto e foi embora. Tuca tem
40 anos de idade e é a mais sofrida talvez dos chimpanzés no
Santuário, que viveu de circo em circo, e comeu até papel jornal,
porque não lhe davam comida, me agradeceu em nome de todos que
Gil, a Brasileira, tinha descansado em paz e nós tínhamos feito o
possível por ela.
GIL, UMA BRASiLEIRA, será o primeiro chimpanzé não exótico, que
será sepultado em sua própria Pátria, e que será um SÍMBOLO, se é
necessário ter mais um, de como o Brasil trata seus irmãos
primatas, que sem direitos sobrevivem ainda sob o seu céu.
A única coisa que podemos fazer neste instante é chorar por ela,
GIL, UMA BRASILEIRA.
Dr. Pedro A.Ynterian
Sorocaba, 19 de junho de 2006.
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