por Sônia Mandruca
Conforme as observações de Yann Martel em seu livro A Vida de Pi,
1“pessoas bem intencionadas, mas mal informadas, acham que os
animais na selva são felizes porque são livres. Elas imaginam esse
animal selvagem vagando pela savana, por exemplo, em passeios
digestivos, após comer uma presa que aceitou religiosamente sua
sina, ou dando corridinhas para manter a forma depois de
empanturrar-se. Imaginam esse animal cuidando de sua cria, toda
família assistindo ao pôr-do-sol, dos galhos das árvores, com
suspiros de prazer. Imaginam que a vida do animal é simples, nobre
e significativa. Mas não é assim que as coisas são.
Os animais na selva levam vidas de compulsão e necessidade num
ambiente em que o estoque de medo é alto e o de comida baixo, e
onde o território precisa ser constantemente defendido e parasitas
eternamente suportados.
Os animais na selva não são, na prática, livres no espaço e no
tempo, nem tampouco em suas relações uns com os outros. Eles não
podem de repente, levantar acampamento e partir, ignorando todas
as convenções sociais e limites próprios da sua espécie.
Se um homem, o mais ousado e inteligente dos seres vivos, não iria
querer vagar de um lugar a outro, como um completo estranho em
quem ninguém repara, por que faria um animal, que por temperamento
é muito mais conservador. Pois é isso que os animais são,
conservadores. As menores mudanças às vezes os transtornam. Eles
querem que tudo seja exatamente igual, dia após dia, mês após mês.
As surpresas lhes são extremamente desagradáveis. Um animal habita
seu espaço, seja na selva, num zoológico, ou num santuário, da
mesma maneira que as peças de xadrez se movem num tabuleiro – com
sentido. Não há mais sorte ou “liberdade” envolvidas no paradeiro
de um camaleão ou de um urso, do que na posição de um cavalo num
tabuleiro de xadrez. Ambos seguem esquemas e propósitos. Na selva
os animais se aferram aos mesmos caminhos pelos mesmos motivos
obrigatórios, estação após estação. Num santuário, ou zoológico,
se um animal não estiver em seu lugar de sempre, em sua postura
habitual, na hora habitual, isto quer dizer alguma coisa. Talvez,
reflita apenas uma pequena mudança no ambiente. Uma mangueira
enrolada, deixada do lado de fora por um tratador, causou uma
impressão ameaçadora. Formou uma poça que incomoda o animal. Uma
escada faz sombra. Mas poderia significar mais alguma coisa. Na
pior das hipóteses, poderia ser, por exemplo, num santuário para
grandes primatas, que algum deles tivesse escapado”.
Não quero dizer com tudo isso que devemos então sair por aí
capturando animais e colocando-os em santuários, de maneira
alguma. Acredito que neste mundo tudo está certo como a natureza
determinou. Porém, muitos animais foram capturados por homens e
jogados em jaulas minúsculas. Eles anseiam a liberdade e fazem
tudo para escapar. Sendo-lhes negada essa liberdade por demasiado
tempo, o animal se torna uma sombra de si mesmo, o seu espírito
aniquilado. Muitas vezes são vendidos para circos, onde são
treinados para fazer graça. Esse “treinamento” vai desde surras,
torturas até mutilações. No caso dos chimpanzés, temos vários
indivíduos, que lhes foram arrancados os dentes, até mesmo
castrados, para oferecerem menos perigo aos domadores.
Nesses casos, onde a reintegração ao seu habitat natural se torna
impossível, é que eu sou a favor de enviá-los a um santuário muito
bem adaptado a todas as necessidades relacionadas a cada animal e
que lhe proporcione o resto de uma vida feliz e saudável, que ele
possa envelhecer com toda dignidade que todo ser existente na
natureza merece.
2 “Nós costumamos dizer: ‘LAR DOCE LAR’ Isto sem a menor dúvida é
que os animais sentem. Eles são territorialistas. Esta é a chave
para suas mentes. Só um território conhecido permite-lhes cumprir
os dois implacáveis imperativos da selva: evitar inimigos e obter
comida e água. Um cercado de um santuário saudável em termos
biológicos, seguindo os padrões da natureza de cada animal – é
apenas mais um território. Os territórios na selva são maiores não
por uma questão de gosto, mas por necessidade”.
Em um santuário, fazemos pelos animais o que fizemos por nós
mesmos com as casas: juntamos num pequeno espaço o que na selva
está espalhado. Enquanto antes a caverna ficava aqui, o rio ali,
os terrenos de caça a um quilometro para aquele lado, o posto de
observação próximo dele – todos infestados de cobras, piolhos,
hera venenosa, agora o rio flui por torneira ao alcance da mão, e
podemos comer onde dormimos e cercar tudo com uma parede
protetora, mantendo o lugar limpo e quente. Um recinto num
santuário é um território compacto onde todas as necessidade
básicas são realizadas perto e em segurança. Um recinto saudável
para o animal é onde ele encontra tudo o que precisa: um posto de
observação, um lugar para descansar, para comer e beber - e vendo
que não precisa se deslocar porque a comida aparece todos os dias
da semana, o animal toma posse do seu espaço no santuário da mesma
forma que ocuparia um novo espaço na selva. Assim que se cumpre
esse ritual de mudança e ele se instala, não se sente como um
inquilino nervoso, e muito menos como um prisioneiro, e sim como
um proprietário, inclusive defendendo-o com unhas e dentes caso
seja invadido. Pode-se até afirmar que se o animal pudesse
escolher com inteligência, optaria por morar num santuário, longe
dos inimigos e parasitas e com abundância de comida. Pense nisso.
Você preferiria um quarto no Ritz, com serviço de quarto grátis e
acesso ilimitado a um médico, ou ser um sem-teto sem ninguém para
cuidar de você?
Sim, isto mesmo, porque, um santuário nada mais é do que um hotel
para animais. Vejamos o exemplo do nosso santuário para
chimpanzés:- Pela manhã são acordados pelo tratador com uma
garrafa de café com leite, e para aqueles que não gostam,
substituímos por chá com bisnaguinhas ou bolachas. Depois são
abertas as portas dos túneis que dão para uma área cercada onde
fica o play ground. Ali eles ficam brincando de pega-pega, no
verão entram na piscininha, ou brincam na areia e ás vezes para
variar um pouco também brigam.
Ás 10:30 horas recebem uma vitamina de frutas, às l2:00hs são
colocadas as bandejas de frutas e verduras. Depois de comerem e
brincarem bastante, eles costumam tirar uma soneca para repor as
energias e quando acordam as brincadeiras recomeçam e vão até às
l7:00 ou l8:00 horas quando retornam aos seus quartos que já estão
devidamente limpos e com as camas arrumadas, para que eles possam
então jantar, ver um pouco de teve, tomar um mingau quentinho e
dormir . É neste horário então que fazemos a faxina da área de
lazer, para que no dia seguinte esteja tudo limpinho e eles possam
começar toda rotina novamente.
Tudo isto sem contar que cada hóspede tem sua preferência quanto a
comida, reclama da morosidade do serviço, e nunca dá gorjetas.
Para falar a verdade alguns deles quando ficam nervosos tem
explosões de raiva, chutam as portas, e as vezes chegam até a
quebrar as camas. Existem também os indivíduos com desvios
sexuais, alguns reprimidos demais, outros depravados fazendo cenas
de sexo explícito.
Aí eu lhe pergunto:- você gostaria de ter estes hóspedes em sua
casa?
Pois eu tenho, e às vezes eu mesma me pergunto: - Por que? Para
que? O que me levou a me envolver tanto, a trabalhar tanto para
esses chimpanzés? E a resposta é esta “ENVOLVER”. Porque eles nos
envolvem de tal maneira, que quanto mais ficamos com eles, mais
queremos ficar.
Os chimpanzés são criaturas fabulosas, inteligentes, determinados,
com todas as emoções iguais as dos humanos:- alegrias, tristezas,
raiva, inveja, ciúme, depressão, mau humor, bom humor, são por
muitas vezes cômicos, carinhosos, orgulhosos.
O que eu ganho cuidando deles, o dinheiro não pode comprar.
Ganho a alegria de ouvir seus gritinhos de satisfação, ao
receberem uma guloseima do tipo: bolo, doce, suco, balas,etc...
Assisto a uma apresentação todos os dias com palhaçadas,
caretinhas de monstro, língua de cobra, boca de velha, danças,
proporcionada pela chimpanzé Camila de oito anos de idade, que faz
tudo isso, só para me ver dando risada ou para receber uma seção
de cócegas.
Beijinhos então, ganho de todos.
Tenho uma sensação reconfortante, quando eu os vejo entrando no
quarto e fazendo seus ninhos com os cobertores e se aconchegando
para dormir.
Se estou triste ou choro, eles já vêm correndo preocupados, e
ficam dando beijinhos até eu dar um sorriso.
Não imagino mais minha vida sem eles e espero que meus netos
tenham a oportunidade de conviverem tão próximos aos chimpanzés,
como eu tive.
Eles nos ensinam a viver no presente, a tirar o Maximo proveito do
momento em que se está vivendo. Eles não ficam presos as
lembranças do passado, ou com medo do futuro como nós os seres
humanos, apesar de terem a capacidade de fazer planos para o
futuro.
A pesquisadora e especialista em chimpanzés, Jane Goodall, conta
que certa vez observando um grupo de chimpanzés na selva notou que
um chimpanzé hierarquicamente inferior em seu grupo almejava a
liderança porém era bem menor que o seu líder e portanto não teria
chance alguma na hora do confronto. Decidiu então todas as manhãs
quando o bando saia para procurar comida, e avistava uma árvore
com frutos, ele era o primeiro a subir e jogar os frutos para seus
amigos que esperavam em baixo se fartarem.
Após alguns dias, percebendo a sua popularidade em alta, desafiou
o líder que veio ferozmente colocá-lo em seu devido lugar. Este
então começou a gritar e todo o bando veio em seu auxilio não
apenas batendo no lider mas também banindo-o do grupo.
Desde esse dia, após ter conquistado a liderança, nunca mais o
chimpanzé voltou a jogar frutos para o resto do bando.
Isto nos faz lembrar de alguns seres humanos muito conhecidos por
nós:- os políticos.
Enfim, aprendi e aprendo muitas coisas sobre eu mesma, sobre a
vida, observando e cuidando dos chimpanzés. É impossível olhar
para um chimpanzé e não sentir a grandeza e a força da vida.
Todas as noites vou dormir com a sensação e a certeza de ter
proporcionado momentos felizes para alguns seres tão especiais que
AINDA habitam nosso planeta.
Na verdade eles nos dão muito mais alegrias do que trabalho e como
disse uma amiga:- É PRECISO QUE OLHEMOS PARA OS CHIMPANZES COM
PAIXÃO PARA QUE SEJA DESPERTADO EM NOSSOS CORACÕES O SENTIMENTO DE
COMPAIXÃO E POSSAMOS AJUDÁ-LOS A TER UMA VIDA MAIS DIGNA E LONGE
DE MAUS TRATOS .
Martel, Yann
A Vida de Pi, Ed. IPA/RJ.
1 pg. 30 e 31
2 pg. 28”
Sônia Mandruca e sua filha, Dra. Selma Mandruca, têm um Santuário
de Grandes Primatas, em Vargem Grande Paulista, e são membros do
Projeto GAP.
tocadosanjos@terra.com.br
Notícias do GAP 28.06.2006
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