Erik von
Farfan
Jornalista
Depois de sofrer com a biopirataria, com o roubo de minérios e
madeiras nobres, agora a Amazônia está enfrentando o tráfico de
água doce. Uma nova modalidade de saque aos recursos naturais
denominada hidropirataria. Cientistas e autoridades brasileiras
foram informadas que navios petroleiros estão reabastecendo seus
reservatórios no Rio Amazonas antes de sair das águas nacionais.
Porém a falta de uma denúncia formal tem impedido a Agência
Nacional de Águas (ANA), responsável por esse tipo de
fiscalização, de atuar no caso.
Enquanto as grandes embarcações estrangeiras recriam a pirataria
do Século 16, a burocracia impede o bloqueio desta nova forma de
saque das riquezas nacionais.
Ivo Brasil, Diretor de Outorga, Cobrança e Fiscalização da Agência
Nacional de Águas, sabe desta ação ilegal; contudo, aguarda uma
denúncia oficial chegar à entidade para poder tomar as
providências necessárias. “Só assim teremos condições legais para
agir contra essa apropriação indevida”, afirmou.
O dirigente está preocupado com a situação. Precisa, porém, dos
amparos legais para mobilizar tanto a Marinha como a Polícia
Federal, que necessitam de comprovação do ato criminoso para
promover uma operação na foz dos rios de toda a região amazônica
próxima ao Oceano Atlântico. “Tenho ouvido comentários neste
sentido, mas ainda nada foi formalizado”, observa.
A defesa das águas brasileiras está na Constituição Federal, no
Artigo 20, que trata dos Bens da União. Em seu inciso III, a
legislação determina que rios e quaisquer correntes de água no
território nacional, inclusive o espaço do mar territorial, é
pertencente à União.
Isto é complementado pela Lei 9.433/97, sobre Política Nacional de
Recursos Hídricos, em seu Art. 1, inciso II, que estabelece ser a
água um recurso limitado, dotado de valor econômico. E ainda
determina que o poder público seja o responsável pela licença para
uso dos recursos hídricos, “como derivação ou captação de parcela
de água”. O gerente do Projeto Panamazônia, do INPE, o geólogo
Paulo Roberto Martini, também tomou conhecimento do caso em
conversa com técnicos de outros órgãos estatais. “Têm nos chegado
diversas informações neste sentido, infelizmente sempre estão
tirando irregularmente algo da Amazônia”, comentou o cientista,
preocupado com o contrabando.
Os cálculos preliminares mostram que cada navio tem se abastecido
com 250 milhões de litros. A ingerência estrangeira nos recursos
naturais da região amazônica tem aumentado significativamente nos
últimos anos.
Águas amazônicas
Seja por ação de empresas multinacionais, pesquisadores
estrangeiros autônomos ou pelas missões religiosas internacionais.
Mesmo com o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) ainda não
foi possível conter os contrabandos e a interferência externa
dentro da região.
A hidropirataria também é conhecida dos pesquisadores da Petrobrás
e de órgãos públicos estaduais do Amazonas. A informação deste
novo crime chegou, de maneira não oficial, ao Instituto de
Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), órgão do governo local.
“Uma mobilização até o local seria extremamente dispendiosa e
necessitaríamos do auxílio tanto de outros órgãos como da
comunidade para coibir essa prática”, reafirmou Ivo Brasil. A
captação é feita pelos petroleiros na foz do rio ou já dentro do
curso de água doce. Somente o local do deságüe do Amazonas no
Atlântico tem 320 km de extensão e fica dentro do território do
Amapá. Neste lugar, a profundidade média é em torno de 50m, o que
suportaria o trânsito de um grande navio cargueiro. O contrabando
é facilitado pela ausência de fiscalização na área.
Essa água, apesar de conter uma gama residual imensa e a maior
parte de origem mineral, pode ser facilmente tratada. Para
empresas engarrafadoras, tanto da Europa como do Oriente Médio,
trabalhar com essa água mesmo no estado bruto representaria uma
grande economia. O custo por litro tratado seria muito inferior
aos processos de dessalinizar águas subterrâneas ou oceânicas.
Além de livrar-se do pagamento das altas taxas de utilização das
águas de superfície existentes, principalmente, dos rios europeus.
As águas salinizadas estão presentes no subsolo de vários países
do Oriente Médio, como a Arábia Saudita, Kuwait e Israel. Eles
praticamente só dispõem desta fonte para seus abastecimentos. O
Brasil importa desta região cerca de 5% de todo o petróleo que
será convertido para gasolina e outros derivados considerados de
densidade leve. Esse procedimento de retirada do sal é feito por
osmose reversa, algo extremamente caro.
Na dessalinização é gasto US$ 1,50 por metro cúbico e US$ 0,80 com
o mesmo volume de água doce tratada.
Hidro ou biopirataria?
O diretor de operações da empresa Águas do Amazonas, o engenheiro
Paulo Edgard Fiamenghi, trata as águas do Rio Negro, que abastece
Manaus, por processos convencionais. E reconhece que esse
procedimento seria de baixo custo para países com grandes
dificuldades em obter água potável. “Levar água para se tratar no
processo convencional é muito mais barato que o tratamento por
osmose reversa”, comenta.
O avanço sobre as reservas hídricas do maior complexo ambiental do
mundo, segundo os especialistas, pode ser o começo de um processo
desastroso para a Amazônia. E isto surge num momento crítico,
cujos esforços estão concentrados em reduzir a destruição da flora
e da fauna, abrandando também a pressão internacional pela
conservação dos ecossistemas locais.
Entretanto, no meio científico ninguém poderia supor que o
manancial hídrico seria a próxima vítima da pirataria ambiental.
Porém os pesquisadores brasileiros questionam o real interesse em
se levar as águas amazônicas para outros continentes. O que
suscita novamente o maior drama amazônico, o roubo de seus
organismos vivos. “Podem estar levando água, peixes ou outras
espécies e isto envolve diretamente a soberania dos países na
região”, argumentou Martini.
A mesma linha de raciocínio é utilizada pelo professor do
Departamento de Hidráulica e Saneamento da Universidade Federal do
Paraná, Ary Haro. Para ele, o simples roubo de água doce está
longe de ser vantajoso no aspecto econômico. “Como ainda é
desconhecido, só podemos formular teorias e uma delas pode estar
ligada ao contrabando de peixes ou mesmo de microorganismos” ,
observou.
Essa suposição também é tida como algo possível para Fiamenghi,
pois o volume levado na nova modalidade, denominada
“hidropirataria” seria relativamente pequeno. Um navio petroleiro
armazenaria o equivalente a meio dia de água utilizada pela cidade
de Manaus, de 1,5 milhão de habitantes. “Desconheço esse caso, mas
podemos estar diante de outros interesses além de se levar apenas
água doce”, comentou.
Segundo o pesquisador do INPE, a saturação dos recursos hídricos
utilizáveis vem numa progressão mundial e a Amazônia é considerada
a grande reserva do Planeta para os próximos mil anos. Pelos seus
cálculos, 12% da água doce de superfície se encontram no
território amazônico. “Essa é uma estimativa extremamente
conservadora, há os que defendem 26% como o número mais preciso”,
explicou.
Em todo o Planeta, dois terços são ocupado por oceanos, mares e
rios. Porém, somente 3% desse volume são de água doce. Um índice
baixo, que se torna ainda menor se for excluído o percentual
encontrado no estado sólido, como nas geleiras polares e nos cumes
das grandes cordilheiras. Contando ainda com as águas
subterrâneas. Atualmente, na superfície do Planeta, a água em
estado líquido, representa menos de 1% deste total disponível.
A previsão é que num período entre 100 e 150 anos, as guerras
sejam motivadas pela detenção dos recursos hídricos utilizáveis no
consumo humano e em suas diversas atividades, com a agricultura.
Muito disto se daria pela quebra dos regimes de chuvas, causada
pelo aquecimento global. Isto alteraria profundamente o cenário
hidrológico mundial, trazendo estiagem mais longas, menores
índices pluviométricos, além do degelo das reservas polares e das
neves permanentes.
Sob esse aspecto, a Amazônia se transforma num local estratégico.
Muito devido às suas características particulares, como o fato de
ser a maior bacia existente na Terra e deter a mais complexa rede
hidrográfica do planeta, com mais de mil afluentes. Diante deste
quadro, a conclusão é óbvia: a sobrevivência da biodiversidade
mundial passa pela preservação desta reserva.
Mas a importância deste reduto natural poderá ser, num futuro
próximo, sinônimo de riscos à soberania dos territórios
panamazônicos. O que significa dizer que o Brasil seria um alvo
prioritário numa eventual tentativa de se internacionalizar esses
recursos, como já ocorre no caso das patentes de produtos
derivados de espécies amazônicas. Pois 63,88% das águas que formam
o rio se encontram dentro dos limites nacionais.
Esse potencial conflito é algo que projetos como o Sistema de
Vigilância da Amazônia procuram minimizar. Outro aspecto a ser
contornado é a falta de monitoramento da foz do rio. A cobertura
de nuvens em toda Amazônia é intensa e os satélites de
sensoriamento remoto não conseguem obter imagens do local. Já os
satélites de captação de imagens via radar, que conseguiriam furar
o bloqueio das nuvens e detectar os navios, estão operando mais ao
norte.
As águas amazônicas representam 68% de todo volume hídrico
existente no Brasil. E sua importância para o futuro da humanidade
é fundamental. Entre 1970 e 1995 a quantidade de água disponível
para cada habitante do mundo caiu 37% em todo mundo, e atualmente
cerca de 1,4 bilhão de pessoas não têm acesso a água limpa.
Segundo a Water World Vision, somente o Rio Amazonas e o Congo
podem ser qualificados como limpos.
Fonte: Eco 21
Ano XIV - nº 93 - Agosto – 2004
www.eco21.com.br
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