O
filósofo australiano diz que quando pessoas normais cometem crimes
bárbaros é sinal de que a sociedade perdeu o controle de si
própria
Richard Perry/The New York Times |
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"Num primeiro
momento, pequenas infrações parecem não ter importância, mas
ao longo do tempo a moral da comunidade é afetada em todas
as esferas" |
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Gabriela Carelli
O filósofo australiano Peter Singer, de 60 anos, especialista em
ética, tornou-se mundialmente conhecido com o livro Libertação
Animal, de 1975, no qual defendia que nada justifica os
maus-tratos impostos aos animais pelos produtores de alimentos.
Com mais de trinta outras obras publicadas desde então, Singer
agora volta ao assunto em seu novo livro, A Ética da Alimentação,
recém-lançado no Brasil. Nele, defende que a forma como o ser
humano se alimenta hoje precisa ser reavaliada, pois tem enorme
impacto não apenas no sofrimento dos animais, mas também na saúde
das populações. Ao longo de sua vasta obra, Singer, hoje professor
da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, trata de assuntos
como aborto, uso de embriões para pesquisas científicas, eutanásia
e pena de morte. Nesta entrevista a VEJA, o filósofo comenta o
assassinato brutal do menino João Hélio Vieites, de 6 anos, e
destaca a necessidade de exercitar a ética diariamente para manter
os valores morais de uma sociedade.
Veja – O assassinato do menino
João Hélio, de 6 anos, há duas semanas, chocou o Brasil e
reacendeu o debate sobre os valores éticos na sociedade
brasileira. Um crime bárbaro pode ser tomado como medida dos
valores morais de uma nação?
Singer – Crimes como esse se
sobrepõem à imoralidade. São amorais. Essa ausência total de
valores morais é geralmente percebida em atos praticados por
psicopatas ou assassinos em série. Quando pessoas supostamente
normais cometem barbáries como essa, tem-se um péssimo sinal. É
uma prova de que a sociedade em questão perdeu o controle de si
mesma, que as pessoas não têm mais a noção exata de certo e
errado. Eu não conheço o Brasil e não sou criminalista, por isso
não posso falar de forma específica sobre o caso. De qualquer
modo, como os jovens assassinos tinham a opção de parar o carro e
evitar a tragédia, o ato torna-se injustificável sob qualquer
ponto de vista.
Veja – Existem valores éticos
inatos ou todos resultam da vivência e do aprendizado?
Singer – Certos aspectos
morais são inatos, como o respeito e o compromisso com a família,
com os filhos e com os pais, assim como o senso de justiça e a
reciprocidade. São valores universais, presentes em todas as
sociedades. Já foi provado que eles existem também entre macacos,
gorilas e chimpanzés. Mas alguns valores morais podem sofrer
transformações de acordo com os traços culturais e com a realidade
de cada sociedade. Essa influência da cultura e da realidade nos
valores morais pode ser bem percebida quando tratamos de assuntos
como aborto, eutanásia e comportamento sexual. Cada país tem uma
visão diferente dessas questões.
Veja – O que pode causar o
enfraquecimento dos valores éticos numa sociedade?
Singer – A ética é um
exercício diário, precisa ser praticada no cotidiano. Só assim ela
pode se afirmar em sua plenitude numa sociedade. Se uma pessoa não
respeita o próximo, não cumpre as leis da convivência, não paga
seus impostos ou não obedece às leis de trânsito, ela não é ética.
Num primeiro momento, pequenas infrações isoladas parecem não ter
importância. Mas, ao longo do tempo, a moral da comunidade é
afetada em todas as suas esferas. Chamo a isso de círculo ético.
Uma ação interfere na outra, e os valores morais perdem força, vão
se diluindo. Para uma sociedade ser justa, o círculo ético é
essencial.
Veja – Essa lógica pode ser
aplicada a questões que envolvem criminalidade?
Singer – Sem dúvida. Bogotá é
um exemplo desse círculo ético aplicado no combate à violência. Na
capital colombiana, diminuiu-se a criminalidade combatendo-se os
pequenos crimes diários. Foi um sucesso. Quando os cidadãos são
estimulados a respeitar as leis básicas, passam a respeitar a si
próprios, ao próximo e à cidadania. É o primeiro passo para mudar
uma sociedade corrompida.
Veja – O senhor é a favor da
pena de morte?
Singer – Definitivamente, não.
A pena de morte não é moralmente aceitável e brutaliza uma
sociedade. Prefiro a pena de prisão perpétua, que é mais justa.
Veja – O senhor defende o
aborto e a eutanásia, mas não a pena de morte. Não é uma
contradição?
Singer – Não. Tanto o aborto
quanto a eutanásia não provocam sofrimento. Ao contrário. São
práticas que aliviam o sofrimento. Considero o feto uma vida
humana, mas não uma vida que tenha sensações e sentimentos, pelo
menos na fase de gestação em que ocorre a maioria dos abortos. A
eutanásia é a alternativa moral para aliviar o sofrimento de
doentes terminais. Minha posição é contra a interrupção da vida de
um ser, seja humano, seja animal, que deseja continuar a viver e
sofrerá com a morte inesperada.
Veja – Em seu último livro, o
senhor volta ao tema dos direitos dos animais. Não é contraditório
justificar o aborto e a eutanásia mas defender a vida dos bichos?
Singer – Sempre fui mal
interpretado nesse aspecto. Em nenhum momento disse que não
devemos comer carne porque é errado matar animais. O alvo de
minhas críticas é a maneira antiética como os animais são criados
e abatidos para consumo.
Veja – O senhor argumenta que
é preciso pensar na comida de forma ética. O que significa isso?
Singer – As pessoas precisam
parar de pensar na comida apenas como algo de que se gosta ou que
faz bem à saúde. O ato de comer também é uma decisão ética e
moral. É necessário pensar nas conseqüências do comer, tanto para
os animais que nos servem de alimento como para o meio ambiente ou
para nós próprios. A forma como nos alimentamos hoje faz o animal
sofrer, provoca uma epidemia de obesidade no mundo e é causa de
uma série de doenças nos seres humanos. Isso tem impacto profundo
no planeta e no meio ambiente.
Veja – O que há de errado na
criação dos animais destinados à alimentação humana?
Singer – Os animais são
criados nas fazendas industriais sem a mínima dignidade. Os
porcos, que instintivamente procuram abrigo para alimentar seus
filhotes, não podem sequer se mexer, porque vivem num espaço
mínimo. Os filhotes são arrancados da mãe o mais rápido possível,
para que possam engordar e procriar. O gado não come capim, como
todo mundo pensa, mas restos de animais e seus excrementos. Os
frangos criados em granja vivem em galpões que abrigam até 20.000
aves que nunca vêem a luz do dia, só a luz artificial. São
abarrotadas de antibióticos e hormônios para ganhar peso. Quem não
se interessa pelos bichos deve pelo menos pensar em si próprio. A
doença da vaca louca é um exemplo do resultado dessa forma de
criação estapafúrdia. Além disso, o confinamento de bilhões de
animais, alimentados de forma excessiva para o abate, exige uma
quantidade incomensurável de plantações. Em alguns anos não haverá
mais terra para plantio no planeta. Isso sem falar que a China e a
Índia, com suas enormes populações, começaram a reproduzir métodos
ocidentais de criação de animais. Se esse processo continuar,
aumentarão os danos ao ambiente, a incidência de doenças cardíacas
e os casos de câncer do sistema digestivo. São bons motivos para
avaliar a comida moralmente.
Veja – O que o senhor propõe
para mudar essa situação?
Singer – Eu sou vegetariano,
mas não acredito que parar de comer carne seja a solução para o
mundo. Há maneiras mais dignas de criar os animais, respeitando
sua natureza e o meio ambiente. Pode parecer contraditório, mas
são os próprios produtores de alimentos que vão imprimir essas
mudanças. Na primeira etapa do processo, o consumidor precisa ser
educado. Esse é um dos objetivos do meu novo livro. As pessoas têm
de conhecer a realidade das fazendas industriais e saber que suas
escolhas têm muito peso para modificar a atitude dos empresários
do ramo em relação aos animais. O mercado só produz o que o
consumidor quer. O consumo de vitela, por exemplo, caiu
drasticamente quando se tornou público que os bezerros são
separados da mãe e transformados propositalmente em animais
anêmicos, confinados em espaços minúsculos, para que sua carne
fique macia e branca.
Veja – Os produtores de
alimentos estão dispostos a mudar seus métodos de criação de
animais de maneira drástica?
Singer – Eles não têm muita
saída. No mês passado, o maior produtor de porcos dos Estados
Unidos, a Smithfield Farms, anunciou uma reestruturação nos
criadouros de seus animais, hoje confinados em pequenos espaços. A
empresa tem 187 fazendas de porcos nos Estados Unidos e prevê que
só em dez anos as mudanças serão implementadas em todas elas. Mas
a simples divulgação da medida já desencadeou uma série de outras
ações, inclusive de empresas menores, que conseguirão resultados
mais rapidamente. Poucos dias depois de a empresa americana
anunciar isso, a maior produtora canadense de porcos decidiu fazer
o mesmo.
Veja – A ação dessa empresa
decorre da conscientização do consumidor?
Singer – Sem dúvida. É uma
reação em cadeia. A empresa americana só promoveu mudanças em sua
criação de porcos porque sofreu pressão de um de seus maiores
clientes, o McDonald's. E isso só aconteceu porque os clientes do
McDonald's mostraram indignação com a forma como os porcos são
criados. O mesmo está ocorrendo em relação ao aquecimento global.
A preocupação das pessoas com o futuro do planeta é cada vez
maior, o que tem pressionado as empresas a mudar suas atitudes e
seus métodos de produção, criando alternativas para evitar a
emissão de dióxido de carbono.
Veja – A humanidade sempre
manteve laços afetivos com alguns animais. Por que oferecemos
tanto amor aos bichos de estimação e às espécies em extinção
enquanto negligenciamos as que nos alimentam?
Singer – Sempre fomos muito
seletivos em relação aos animais com os quais queremos nos
relacionar. Temos uma ligação mais profunda com bichos nos quais
reconhecemos emoções e sentimentos, em particular com os
cachorros, por causa do amor incondicional que eles nos oferecem.
Respondemos bem a isso. As espécies em extinção, por sua vez,
representam as mudanças que o planeta sofreu por causa da
interferência humana. A extinção, por ser irreversível, é uma
representação da perda, um processo que nos toca fundo. O mesmo
não acontece com os animais que nos servem de alimento. O ser
humano não tem empatia com eles nem quer mudar os próprios hábitos
alimentares. É mais fácil não pensar sobre isso.
Veja – Em seu livro,
escrevendo sobre a obesidade, o senhor sugere uma reflexão sobre o
conceito da gula. Por que a sugestão?
Singer – Comemos demais e
desnecessariamente. As religiões, de certa forma, sempre exerceram
um controle sobre o que os fiéis comem. Uma leitura moral da
história da alimentação revela que, de todas as religiões, a que
menos conteve os excessos alimentares foi o cristianismo. Não se
encontra na cultura cristã a série de restrições alimentares
presente no islamismo, no judaísmo e até mesmo na tradição
hinduísta. Nessas três culturas, há diversas advertências sobre o
que se deve ou não comer. O que existe na tradição cristã é o
pecado pelo excesso de comida, a gula, que foi esquecido ao longo
dos séculos pelos cristãos. Esqueceram-se da gula e preocuparam-se
com outros pecados, principalmente os de natureza sexual. O maior
exemplo disso são os Estados Unidos. É um país cristão por
natureza e, mesmo assim, a nação com a maior população obesa do
mundo. Precisamos pensar sobre isso. Afinal, uma pessoa que come o
dobro ou mais de carne do que precisa, carne proveniente de
animais criados para consumo, não faz mal apenas a si mesma. Esse
hábito tem impacto no planeta e, do ponto de vista moral, também é
duplamente ruim.
Veja – O senhor é a favor dos
alimentos geneticamente modificados, os transgênicos?
Singer – Do ponto de vista
moral, não vejo mal algum nos transgênicos. Ainda mais imperioso
do que combater a obesidade é acabar com a fome no mundo, e esses
alimentos podem ser uma das soluções para o problema. Além disso,
as plantações de transgênicos não precisam de pesticidas, o que
ajuda a preservar o meio ambiente, ao contrário do que ocorre nas
fazendas convencionais.
Veja – O que diria a quem
deseja ser ético em relação à alimentação diária?
Singer – O que defendo no
livro, e faço questão de deixar bem claro, é que não precisamos
ser vegetarianos para ser éticos. Da mesma forma que não
precisamos parar de usar o carro para ajudar a combater o
aquecimento global – podemos mudar o tipo de energia usada para o
carro funcionar. Na questão alimentar, é possível, por exemplo,
evitar a carne de animais criados de forma tradicional. Uma boa
opção é escolher os produtos animais provenientes das chamadas
fazendas orgânicas. Já é uma tremenda mudança.
Veja – E que conselhos daria a
quem quer ser ético no dia-a-dia?
Singer – Comece pelo mais
simples. Cumprimente as pessoas, diga bom-dia, seja educado com
quem convive.
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